As mudanças no mundo do trabalho e das novas formas de emprego via plataformas demandam um maior diálogo dentro do Poder Judiciário e entre instituições do governo e da sociedade, defende o presidente do Tribunal Superior do Trabalho (TST), Aloyzio Corrêa da Veiga.

Há um mês no cargo, ele disse à CNN ser a favor de uma regulação que traga parâmetros mínimos de contribuição para a Previdência Social e de mecanismos para seguro por acidente de trabalho. “Senão sobra para o Estado”, comentou sobre o fenômeno da “uberização”. “Porque as pessoas envelhecem, ou se acidentam”.

Conforme o ministro, uma eventual regulamentação do setor de trabalho por aplicativos, como Uber e iFood, deve trazer também normas sobre um limite máximo de jornada de trabalho: a chamada desconexão.  

“Eu não posso deixar que um prestador de serviços de trânsito trabalhe 16 horas, 18 horas por dia. Porque o risco para a sociedade é imenso. Em São Paulo, morrem dois motociclistas por dia”, afirmou.  

Aloysio Corrêa da Veiga, de 74 anos, tomou posse em 10 de outubro como presidente do TST. O mandato é de dois anos. A sua gestão, no entanto, será mais curta porque o magistrado completa 75 anos em outubro do ano que vem e terá que se aposentar compulsoriamente. 

Divergências

No embate recente entre a Justiça do Trabalho e o Supremo Tribunal Federal (STF), Corrêa da Veiga prega mais “debate”. A controvérsia tem se dado em relação ao reconhecimento de vínculo empregatício. 

Magistrados do ramo trabalhista têm enquadrado determinados casos de pejotização como fraude à legislação trabalhista, o que leva ao reconhecimento de uma relação regulada pela CLT (Consolidação das Leis de Trabalho).  

Ministros do Supremo, por sua vez, têm derrubado essas decisões e reafirmado a jurisprudência da Corte que permite a terceirização de todas as atividades de uma empresa.  

A intervenção do STF no debate é feita a partir do ajuizamento de reclamações, um tipo de ação que permite questionar diretamente no Supremo a violação de algum entendimento da Corte, inclusive “pulando” instâncias do Judiciário.  

“O número de reclamações não impressiona. O que impressiona é que elas são interpostas contra decisão de primeiro grau, e não houve esgotamento da instância trabalhista”, disse o presidente do TST. “É claro que para a parte é muito mais econômico, em vez de recorrer no TST, entra logo com a reclamação no STF”. 

Recentemente, um embate sobre pejotização foi alvo de divergência entre os ministros do STF Alexandre de Moraes e Flávio Dino. Moraes chegou a sugerir que o pejotizado que entrar com ação trabalhista pedindo para reconhecer vínculo de emprego deveria pagar os impostos como pessoa física que deixaram de ser recolhidos durante o serviço prestado.

Leia abaixo a entrevista: 

CNN: Quais os principais projetos e iniciativas da sua gestão à frente do TST?
Aloyzio: Recebemos pela estrutura do Estado uma missão, e essa missão constitucional é de pacificação social, julgar e solucionar conflitos de interesse. Essa é a nossa missão principal, que nos reservou a Constituição. É preciso que tenhamos a visão de proporcionar um princípio que consagramos internacionalmente, que é a razoável duração do processo. Para isso, tem algo chamado coerência, estabilidade e previsibilidade. Isso se faz com a adoção de uma cultura de precedentes, para que tenhamos uma jurisprudência que tenha um caráter qualificado. E, naturalmente, possa ser elemento de conscientização de toda magistratura trabalhista. Casos iguais têm que ser julgados de maneira igual. Casos diferentes, de maneiras diferentes.  

CNN: A conciliação é um elemento importante nos processos trabalhistas; como tem sido o seu uso nos casos que chegam ao TST?
Aloyzio: A conciliação é a melhor forma de resolução do conflito. É a autoridade das partes solucionando. É claro que é necessário mediação para que haja até o compartilhamento da experiência, expertise de todo um conteúdo. E isso deixando para que as partes passam resolver. Elas terem autoridade de solucionar conflitos com a mediação do Judiciário. 

Um dos princípios do processo do trabalho é a conciliação. E trouxemos isso no TST, criando o Cejusc [Centro Judiciário de Métodos Consensuais de Solução de Conflitos], que não tinha. Em um ano de atuação, foram solucionados mais de R$ 1 bilhão em termos de conciliação celebrados. Uma quantidade imensa de audiências de conciliação, equiparando até varas do trabalho de cidades grandes. E as mediações pré-processuais. Isso retira a litigiosidade. E isso dá aos interlocutores, os atores, a certeza e a sensibilidade que a atuação diferenciada do Poder Judiciário. Quando mais celebrarmos essa modalidade, cultivar, ou cultuar essa solução de conflito, mais vamos ter um êxito na prestação jurisdicional, até na arrecadação da Previdência Social. Em 2023, tivemos em termos nacionais mais de R$ 7 bilhões de acordos celebrados e mais de R$ 800 milhões de contribuições previdenciárias recolhidas. Então são valores que demandam atenção.   

CNN: Enquanto esteve na vice-presidência, o senhor tocou uma negociação sobre o piso da enfermagem. Como avalia o resultado?
Aloyzio: Tivemos a audiência pós-decisão do Supremo. O resultado disso, houve uma pacificação, embora nos não tenhamos celebrado o acordo nacional. Mas houve os acordos regionais no sentido de cada região celebrar o ajuste para o piso nacional. Agora, tivemos por exemplo uma mediação pré-processual aqui no TST que foi com a Ebserh (Empresa Brasileiras de Hospitais), que estava em greve e, em vez de eles irem acionar o Judiciário com uma ação de dissídio coletivo de greve, eles preferiram que o TST fizesse a audiência de conciliação. Com o êxito no final, voltaram ao trabalho celebrando o acordo coletivo. Isso foi importantíssimo. 

CNN: O STF tem derrubado decisões da Justiça do Trabalho por meio de um grande número de reclamações ajuizadas na Corte, inclusive com algumas vocalizações de ministros do Supremo criticando a postura da Justiça do Trabalho. Como encara essa situação?
Aloyzio: Temos que afirmar nossa competência. A competência de atuação da Justiça do Trabalho é o artigo 114 da Constituição. Somos competentes para julgar ações do trabalho. Com relação às reclamações, é preciso entender o seguinte. O processo do trabalho tem uma característica. Para apresentar o recurso extraordinário no STF, tem que esgotar a instância trabalhista. E a questão das reclamações é que elas estão sendo interpostas de decisão de primeiro grau, em antecipação de tutela. Então vai direto para o STF e nós não tivemos a oportunidade de corrigir eventual divergência com relação á própria estrutura da jurisprudência do TST. É preciso entender isso, o número de reclamações não impressiona. O que impressiona é que elas são interpostas contra decisão de primeiro grau, e não houve esgotamento da instância trabalhista. E é claro que para a parte é muito mais econômico, ao invés de recorrer no TST, entra logo com a reclamação no STF. 

CNN: Mas da parte isso é até esperado. Agora, é um problema também o STF ter essa postura e dar essas decisões?
Aloyzio: Mas ele [STF] admite as reclamações porque a lei assim [permite]. Quando se tratar de tema de repercussão geral, poderá a parte interpor direto a reclamação para garantir a autoridade da decisão do STF. Então, qual foi o objetivo da norma legal? Era evitar uma tramitação demorada para aquilo que já estava sedimentado. Mas é preciso entender que essas decisões precárias podem ser corrigidas no âmbito do próprio tribunal. 

CNN: Então é preciso ter o quê?
Aloyzio: Talvez um debate melhor sobre isso. Os ministros quando recebem reclamações, eles vão se ater ao teor da decisão que eles estão sendo submetidos a examinar. E não ao conteúdo de toda essa história.  

CNN: O senhor defende a competência da Justiça do Trabalho para analisar relação de trabalho. Isso vale para a CLT e para relações além da CLT também?
Aloyzio: Claro, relação de trabalho não é só relação de emprego. Relação de emprego é uma espécie da relação de trabalho. Tem várias outras relações de trabalho. E para regular relação de trabalho não é só a CLT. Tem a CLT e outras leis de regência, o Código Civil, o Código Comercial. Agora, a competência para analisar é da Justiça do Trabalho, segundo a Constituição.  

CNN: Sobre a uberização, teremos audiência no STF em 9 de dezembro. O TST participará?
Aloyzio: Com certeza, vamos participar sim. É preciso uma regulamentação. Não pode deixar de lado algo chamado Previdência Social e seguro. Porque são compartilhados, senão sobra para o Estado. Porque as pessoas envelhecem. Ou se acidentam.  

CNN: É possível dimensionar o impacto da uberização nas relações de trabalho?
Aloyzio: A maior empresa de transporte rodoviário do Brasil não tem um carro. Agora, o que isso representa a gente vê por aí. A uberização no telefone, no algoritmo. Quando chegamos na calçada chamamos um Uber para nos locomover. O número, o quanto representa, não tenho a estatística. Mas não é só a Uber, tem o iFood, nas entregas. O que é preciso é que tenha regulamentação, sobretudo em relação a acidente de trabalho, seguro de acidente. Em São Paulo morrem dois motoqueiros por dia. A Previdência Social precisa ter uma atenção maior, porque ela é contributiva, cooperativa, e um dever social. Porque eu vou obter de alguma forma ou de outra uma prestação previdenciária, imediata ou futura.  

CNN: A regulação, ao mesmo tempo que não pode travar qualquer iniciativa tecnológica, também precisa resguardar alguns direitos. Como avançar neste debate?
Aloyzio: Por exemplo, a desconexão. Como eu posso deixar uma pessoa numa atividade dessas 20 horas por dia? Ela está prestando um serviço público. Tem a segurança do passageiro… 

CNN: Motoristas e entregadores acabam muitas vezes, e por diferentes razões, expressando contrariedade a alguma regulamentação. Como lidar com a situação?
Aloyzio: É desconhecimento. O que precisamos é de capacitação. Em todos os setores e segmentos da atuação social. Eu tenho que capacitar e o Estado é responsável pela capacitação, então tem que fazer cursos, mostrar, conscientizar, criar um protagonismo nesse sentido.  

CNN: O STF tem debatido muitos casos de vínculo de emprego, em temas como terceirização, pejotização e fraude à legislação trabalhista. É preciso diferenciar cada um desses casos?
Aloyzio: Pejotização é uma pessoa jurídica, que é o PJ [pessoa jurídica]. Daí o neologismo. Pessoa jurídica pode ser unipessoal, pode ser um MEI (microempreendedor individual), logo, a pessoa jurídica é unipessoal, se confunde com a pessoa física. E a terceirização pressupõe três: um prestador, um tomador e uma empresa prestadora. De modo que o tomar é responsável subsidiário pelo que ele cativou, a empresa prestadora de serviço, que colocou a mão de obra para o trabalho. Então, na terceirização, há três pessoas, na pejotização, há duas pessoas – o tomador e o PJ. É possível entender o que isso representa.  

CNN: E por que esse entendimento acaba baseando as decisões do STF validando a terceirização, inclusive em casos de pejotização?
Aloyzio: Na realidade o que está se entendendo é a licitude das contratações. A pejotização é lícita. Contratar o PJ. E é lícito eu terceirizar atividades. O que seria minha atividade, estou terceirizando para uma outra empresa que vai me fornecer mão de obra para ela.  

CNN: Mas o que ocorre é a derrubada de decisões da Justiça do Trabalho que haviam reconhecido o vínculo de emprego…
Aloyzio: A questão das decisões da Justiça do Trabalho é que elas analisam se há fraude ou não. [Nos casos em que há reconhecimento do vínculo], ela reconheceu uma fraude. E o Supremo, quando analisa, ele vê se há ou não há fraude.  

CNN: Isso precisa ser pacificado também? Ter alguma definição mais padronizada?
Aloyzio: O diálogo é o mais importante. Diálogo. Diálogo institucional, interinstitucional, diálogo no mundo. Qual sociedade eu quero? Isso é o mundo que tem que dizer.  

CNN: Recentemente o ministro Alexandre de Moraes fez uma sugestão para que o pejotizado pague tributo como pessoa física em ação trabalhista que vise reconhecer vínculo empregatício. O senhor concorda com a proposta?
Aloyzio: O ministro disse o seguinte. Que não é possível que eu opte por ser PJ e depois vá pedir uma relação de emprego. Tudo bem, o pensamento dele eu também acho. Em princípio, como regra geral. Se eu quero ser autônomo, logo, eu vou me colocar à disposição no mercado, que vai me remunerar pelo trabalho que eu fizer. Então não tem razão para que depois eu queira ser empregado. Agora, é preciso saber o seguinte. Suponha a área de comunicação. Uma coisa é o cinegrafista PJ. E o cabista? O que carrega o cabo, enrola o cabo, põe na tomada. Pode ser PJ? O repórter, ele pode? Ele tem autonomia para aferir sua própria participação. Agora, o que põe a tomada ali… temos que entender isso. O que serve café, é PJ? Estou dizendo dentro do conceito de pessoa jurídica. É amplo, mas é preciso saber se se aplica a determinadas atividades, se pode ser exercido por pessoa jurídica. 

CNN: Mas tem determinadas atividades que não podem ser exercidas por pessoa jurídica?
Aloyzio: Eu deixo por sua conta. O porteiro do seu prédio, é PJ? O síndico? Pode? Claro que pode. Ainda mais se não morar no prédio, ele pode ser uma pessoa jurídica, unipessoal. Administrador, agora o servente, o zelador…. 

CNN: A questão é de aprimoramento da lei?
Aloyzio: É compreensão da lei, e do rumo. Do rumo que nós vamos dar ao mundo do trabalho.  

CNN: E há clareza de que rumo queremos dar ao mundo do trabalho?
Aloyzio: Nós temos que desenvolver isso. Temos que nos aprimorar sobre isso, e a contribuição é de todos. Estamos diante de um sistema romano-germânico, do direito legislado, da legislação, então a vontade popular é que vai ditar a regra de conduta, por legislação. Por lei. Então é preciso que o Estado, e o Congresso Nacional, que é o responsável por isso, se mostre aberto a exercer. Por essa razão, mesmo no Poder Judiciário, com relação à uberização, a audiência pública é uma das grandes conquistas do processo democrático, de ouvir. E essa função de ouvir também é importante. Porque ouvindo eu posso saber do que está acontecendo.  

CNN: Juízes do trabalho acabam tendo conhecimento de como outros países estão lidando com a situação?
Aloyzio: Claro. Portugal, por exemplo, fez uma alteração legislativa criando uma regra no Código de Trabalho português dizendo que, quando há presunção de laboralidade, é empregado. Mesmo da Uber. É preciso que haja alguma regulação sobre isso, boa ou ruim. Não sei se está dando certo em Portugal, mas é preciso entender que é preciso que haja regulação. E temos que entender como funciona o mundo. Não adianta eu atrelar a um critério quando a realidade se mostra diferente. Com relação à Uber, tem um terceiro emprego, tem o segundo emprego, tem a atividade que é só para complementação, e tem aquele que é exclusivo. Temos várias modalidades. Eu saio do meu trabalho formal, tenho meu carro e boto a bandeira para pegar o algoritmo e transportar passageiro durante determinado tempo. Outros, eu sou aposentado, já tenho minha vida e de 8h a meio dia vou dar uma caprichada e faturar um extra. Então cada situação é uma realidade.  

CNN: Cada situação mereceria uma regulação específica?
Aloyzio: Pode ser uma regulação mais ampla, mas enfrentando esses casos. Para mim a coisa mais importante é a questão da conexão e desconexão. É preciso. Para mim um dos pontos mais importantes é esse. Eu não posso deixar que um prestador de serviços de trânsito trabalhe 16 horas, 18 horas por dia. Porque o risco para a sociedade é imenso.  

CNN: Muitas vezes ouvimos o argumento sobre o impacto no modelo de negócio das plataformas quando se trata de regulação. Isso pode representar algum obstáculo?
Aloyzio: A regulação que eu disse é previdência social, seguro de acidente e desconexão. Isso é o mínimo.  

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